terça-feira, 22 de julho de 2014

DESAPOSENTAR-SE, por Domingos Pellegrini

Gostei muito deste texto, que me foi remetido por email, supostamente da autoria de Domingos Pellegrini, e aproveito para o divulgar neste meu blog...

Fotos do Google
 
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DESAPOSENTAR-SE

O homem chegou à praça com um martelo.
Endireitou a estaca de uma muda de árvore, firmou-a melhor no solo com a ajuda da ferramenta e prendeu a planta à estaca.
Em seguida afastou-se, como que para contemplar uma obra de arte.
 


Não resisti a puxar conversa:

— O senhor pertence à câmara?

— Não, pertenço à Alice.
É minha mulher há quarenta e dois anos.

— Foi o senhor que plantou essa muda?

— Não, foi a câmara.
Caiu uma árvore velha e plantaram esta nova.
Mas, como o fizeram sem cuidado, eu coloquei-lhe uma estaca e adubei-a.
Agora está cheia de folhinhas novas e rego-a todas as tardes.

— Vê-se que gosta de plantas…

— Gosto de plantas, de animais, até gosto de pessoas.

— Obrigado pela parte que me cabe…

O homem sorriu, tirou uma tesoura enorme da cinta e começou a podar um arbusto.

— O senhor é aposentado? — quis eu saber.

— Não, sou desaposentado — respondeu, brincalhão.

Logo a seguir, começou a explicar-me o trocadilho enquanto podava.

— Sabe, quando me reformei, já tinha visto muitos colegas aposentarem-se e definharem, como se fossem árvores regadas com ácido de bateria.
Sabia que há comerciantes que regam plantas com ácido de bateria com medo de que elas cresçam e encubram a fachada da loja?
Depois ficam com a montra queimada pelo sol…

Picotou os galhos podados, que formaram um tapete de folhas em redor do arbusto, e continuou:

— Isto faz bem à terra.
Tudo o que vem da terra deve voltar à terra.
Alguns desses meus colegas enfiavam os chinelos e sentavam-se diante da televisão durante todo o dia.
Outros iam até ao café beber cerveja ou dormiam toda a tarde.
Engordaram tanto que acabaram por ter derrames cerebrais ou enfartes.
Era uma vida passada a não fazer nada e a falar constantemente de doenças…

Cortou algumas flores e compôs um ramo.

— É para a minha mulher.
Apesar de ser um ano mais velha do que eu, parece uma menina sempre que recebe flores.
A Alice também está reformada, mas ajuda a cozinheira da escola da nossa neta a fazer doces com pouco açúcar e a aproveitar os legumes que antes deitavam fora para fazer salgadinhos.
Além de dar uma mãozinha na creche e no hospital.
Como passa a vida a ajudar os outros, nem tem tempo para pensar em doenças…

Amarrou o ramo com um fio de erva e pousou-o num banco com cuidado.

— Sempre que preciso de regar, tenho de ir buscar água a casa.
Pedi à câmara que colocasse uma torneira no jardim, mas disseram que as pessoas iam deixar a torneira a verter depois de beber água.
Disse-lhes que lhe pusessem uma grade e um cadeado e que eu tomaria conta da torneira.
Recusaram, com o pretexto de haver um bem público controlado por um particular.
Nessa altura, perguntei-lhes porque me deixavam cuidar da praça se não me deixavam cuidar de uma torneira.
Quando me perguntaram quem me dera autorização, vim embora antes que mo proibissem.
Ou que obrigassem a preencher formulários com três cópias…

Mudando de assunto, chamou a minha atenção para um pinheiro da praça.

— Está a ver aquele pinheiro fêmea?
Foi a Alice que o plantou.
Só havia um pinheiro macho, mas agora vai haver pinhões, porque ele vai polinizar o pinheiro fêmea.

— Eu nem sabia que havia pinheiros de dois sexos — comentei.

— Nem eu — confessou ele — mas tenho aprendido muito desde que cuido desta praça.
Hoje sei quais são as épocas de floração de cada planta, conheço o canto de cada passarinho, e vejo a mudanças das estações como se fosse um filme.

— Mas ainda vai demorar a dar pinhões, não vai? — perguntei, olhando para a pinheirinha.

— Pressa é coisa que não tenho — assegurou ele.
— A nossa neta ainda é pequenina e eu já lhe disse que era ela que ia colher os pinhões.
Sem a câmara saber, claro…
A Alice disse-lhe que ela teria de plantar um pinhão de cada pinha que colher. Assim, quando for velhinha, a nossa neta vai poder ver um pinhal inteiro plantado por ela.
 


— Sabe, acho admirável ver alguém da sua idade com tanta esperança! — comentei.

O homem sorriu e disse:

— Se é admirável ou não, não sei.
Só sei que sabe bem.
Agora, se me dá licença, tenho de ir buscar a Alice para caminharmos um pouco.
A vida de um desaposentado é assim: o dinheiro é curto, mas o dia pode ser comprido, se não perdermos tempo com coisas inúteis!

Domingos Pellegrini
(Texto adaptado)

domingo, 20 de julho de 2014

Apenas cretinice?, por Pedro Marques Lopes


Face ao interesse do texto escrito pelo Pedro Marques Lopes, não posso deixar de o divulgar, neste meu blog...

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por PEDRO MARQUES LOPES

PEDRO MARQUES LOPES1 Na quarta-feira passada fiquei a saber que os reformados e aposentados não podem exercer qualquer tipo de funções públicas.
E não, não se está a falar apenas de cargos executivos ou similares.
Um homem, com quarenta anos de experiência na área dos serviços florestais, não pode integrar uma comissão estatal para estudar os problemas do setor; uma mulher, que toda a vida tenha trabalhado no Serviço Nacional de Saúde, não pode transmitir os seus conhecimentos a quem está agora encarregue de uma qualquer pasta da atividade; um gestor público aposentado está proibido de dar uma conferência numa universidade pública; um ex-quadro de um banco ligado ao Estado não pode ter um programa de patinagem artística na RTP.
 
Não, nada tem que ver com os problemas financeiros que o Estado português tem: os aposentados ou reformados não podem, pura e simplesmente, exercer qualquer tipo de funções em organismos ligados a entidades públicas, sejam pagas ou pro bono.
Muito excecionalmente, e se forem autorizados pelo ministro das Finanças, podem fazê-lo e, mesmo assim, as pessoas ficam desde logo impedidas de receber a reforma.
Ou seja, para trabalharem de borla, têm de prescindir da sua reforma...
Não, não há qualquer tipo de engano.
 
Como, provavelmente, o caro leitor, eu também não fazia ideia desta profunda infelicidade e fui para ela alertado por Bagão Félix, no seu espaço de opinião na SIC Notícias - cuja opinião subscrevo e aplaudo. A aberração consta da Lei 11/2014 de 6 de março - diz muito sobre os nossos media e a oposição ela ter passado despercebida.
O anterior diploma, sobre o mesmo assunto, já proibia a remuneração por trabalho, o que já de si era uma infâmia.
Um cidadão trabalharia meses a fio, ou semanas, ou o tempo que fosse, a preparar um qualquer documento ou estudo e nada receberia.
É assim uma espécie de comunismo 3.0: o trabalho para o Estado tem de ser gratuito, os indivíduos não interessam, o coletivo é tudo.
Em frente, demos de barato que a crise justifica tudo, até termos idiotas funcionais ou patetas deslumbrados a fazer leis.
 
Afinal a questão - ficámos desde dia 6 de março esclarecidos, sabendo que até de borla os reformados e aposentados não podem trabalhar para nada que cheire sequer a Estado - nada tem que ver com os já referidos atuais problemas financeiros do Estado português.
Temos assim duas opções: ou achamos que os representantes dos cidadãos, que fizeram e aprovaram esta lei, e o Presidente da República que a promulgou, tiveram um momento de pura cretinice ou pensamos que há aqui um pensamento.
A segunda hipótese, que com boa vontade apelido de pensamento, partirá do princípio de que um reformado ou aposentado é um peso morto para a comunidade.
Nenhuma da sua experiência, do seu trabalho de décadas em prol do bem comum (esse estranhíssimo conceito para quem nos governa) pode ser aproveitado pelas mais diversas organizações ligadas ao Estado, que deve ser até criado um cordão de sanidade entre esses inúteis e a coisa pública.
 
Talvez isto venha no seguimento de uma mentalidade, para aí promovida por uns miúdos que conhecem o mundo através de umas badanas de livros e que nunca saíram do conforto de uma escola qualquer, que afirma que foram os mais velhos, esses bandalhos que agora nos roubam o dinheiro em forma de reformas e pensões, a pôr em causa os seus empregos e os seus direitos.
Talvez haja um plano pra suprimir uma geração inteira, uns velhos que têm o descaramento de pedir o que lhes é de direito.
 
Talvez haja quem pense que uma comunidade pode subsistir e prosperar sem a desejável transmissão de experiências, dos ensinamentos das vitórias e das derrotas.
Que bela comunidade querem construir, ou melhor, será que percebem sequer a ideia de comunidade?
 
Prefiro a cretinice.
Prefiro pensar que, de facto, houve apenas um momento da mais absoluta cretinice que incluiu os governantes proponentes da lei, os deputados que aprovaram este absurdo, e o Presidente da República que a promulgou.
 
2 A lei acima referida pode, através de um olhar radiosamente otimista, ser considerada apenas um disparate.
 
Já a marcação, em segredo, de um exame aos professores para dali a cinco dias, com o objetivo de evitar qualquer tipo de reação da classe e pondo em causa as vidas das pessoas, é um ato evidentemente nojento, indigno de um governo e desrespeitador dos mais básicos direitos.
Em qualquer democracia minimamente madura, um ministro que se atrevesse a fazer uma coisa destas era imediatamente posto fora do Governo, mas, de facto, já se ultrapassaram todos os limites.